O Supremo Tribunal Federal retomou o julgamento do Tema 987, de repercussão geral. O tema discute a responsabilidade civil de plataformas digitais por conteúdo de terceiros, através da questão sobre a constitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet. Em duas sessões nesta semana, na quarta e quinta, o Ministro André André Mendonça, que tinha pedido vista do processo no ano passado, apresentou seu voto.
O documento, lido na íntegra pelo ministro, trouxe como eixo central a proteção da liberdade de expressão. Ao longo da leitura, o documento faz uma série de diferenciações entre os diversos atores do ecossistema digital, suas condutas e serviços prestados – entretanto, tal diferenciação não resultou em um dispositivo, ao final do voto, que diferencia a responsabilidade civil das mais diversas empresas que prestam todos serviços digitais.
Desde o início Mendonça destacou o papel ambivalente das plataformas digitais: embora tenham contribuído para a ampliação do debate democrático, também servem como amplificadoras de ruídos sociais já existentes. Para o ministro, as plataformas não criam os problemas, mas os tornam mais visíveis, funcionando como reflexos de crises institucionais mais amplas – entretanto rejeitou que elas sejam a causa dessas crises. Assim, ele afirmou que a liberdade de expressão é a “liberdade das liberdades”.
O voto seguiu com uma análise comparada entre diferentes sistemas jurídicos. Entretanto, o voto do ministro mostrou de forma bastante evidente uma predileção pelo modelo norte-americano, em especial a Seção 230 do Communications Decency Act, que tem uma previsão análoga ao artigo 19 do Marco Civil da Internet, limitando a responsabilidade das plataformas e incentivando a autorregulação. O que faltou ao voto foi que mesmo a seção 230 do CDA está sendo questionada em altas cortes norte americanas, a exemplo do caso Anderson v. TikTok (2024).
Mendonça também defendeu uma postura autocontida do Judiciário, reafirmando que cabe ao Congresso Nacional a tarefa de legislar sobre questões complexas relacionadas à Internet, sob pena de violação ao princípio da separação de poderes. Ressaltou que, independentemente do mérito da norma, é essencial verificar “quem tem autoridade para decidir”. Neste sentido, boa parte de seu voto foca inclusive na sugestão do Legislativo ao desenvolvimento de um regulação aos moldes de uma auto-regulação regulada, baseada em protocolos de conformidade e boas práticas de governança, nos moldes de um sistema de compliance. Tal modelo afastaria o risco de limitar o desenvolvimento tecnológico caso se imponha demasiadas obrigações às plataformas.
Ao final de seu voto, Mendonça propôs uma série de teses entre as quais se destacam:
- Serviços de mensagens privadas, como o WhatsApp não podem ser equiparados a demais serviços e plataformas digitais, ou seja, não podem ser monitoradas e continuam imunes pelo conteúdo nelas veiculados.
- É inconstitucional a remoção dos perfis de usuários, ressalvados: perfis robôs, perfis falsos (a pessoa deve comprovar que não criou o perfil, ao denunciar) e perfis criados a priori para cometimentos de crimes
- As plataformas em geral (mecanismos de busca, marketplaces) tem o dever de promover a identidade do usuário violador, que é quem deve ser responsabilizado
- Casos em que admitida a remoção de conteúdo por ordem judicial seja por expressa determinação legal ou por Termos de Uso, é preciso assegurar uma espécie de processo administrativo para que o usuário possa ter acesso às razões de sua remoção, bem como pedir a revisão da decisão
- Responsabilidade por atos de terceiros: excetuados os casos previstos em lei, as plataformas não podem ser responsabilizadas. Aqui ele destacou alguns novos casos previstos em lei como os interesses de crianças e adolescentes, previso no Estatuto da criança e do Adolescente, a lei das Bets e aquilo já previsto no art. 21 do Marco Civil da internet, sobre a exposição de imagens íntimas sem consentimento.
- A responsabilidade própria das plataformas se restringiria apenas pela violação de deveres procedimentais. Neste sentido, os Termos de Uso das plataformas, segundo o voto de Mendonça, devem guardar conformidade com o CDC e devem coibir que seus serviços sejam utilizados para o cometimento de crimes
- Em observância ao devido processo legal a decisão judicial que ordena a retirada de conteúdos deve ser acessível a plataforma e apresentar manifestação específica, bem como estar sujeita a recurso
Aos conhecedores da controvérsia é simples perceber: o voto de Mendonça não muda quase nada no regime atual do Marco Civil da Internet. Embora o ministro tenha falado em interpretação conforme a constituição, o único direito fundamental contemplado pelo ministro foi a liberdade de expressão – e em uma versão e abordagem bastante particular.
O voto de Mendonça ignora que a diversos autores e pesquisa mostram: a simples autoregulação falhou. E indo além, de que 6 em cada 10 brasileiros querem que as plataformas de rede social tenham mais responsabilidade sobre o conteúdo que circulam nelas. Ignora os problemas gerados pela falta de qualquer responsabilização e que as redes não são meras intermediárias das comunicações.
Este ponto, inclusive, é contraditório no próprio voto do ministro. Ele afirma que as plataformas digitais viraram veículos de comunicação social, menciona inclusive os conteúdos publicitários e os algoritmos como interferências editoriais no conteúdo. Entretanto, mesmo diante de tais afirmações, Mendonça decide que as plataformas devem continuar gozando de completa imunidade, inclusive de seus atos próprios, devendo estas, na verdade, ser mais cautelosas em remover qualquer conteúdo ou perfil – tudo sob o pretexto de defender uma liberdade de expressão irrestrita aos moldes americanos.
Assim, ainda que tenha falado em interpretação conforme, o voto do ministro aponta para não só a constitucionalidade do art. 19 do MCI, como o estabelecimento de um regime mais rigoroso, em que as plataformas permanecem sem nenhuma responsabilidade pelo conteúdo de terceiro e acrescentando dificuldades para retirar conteúdos danosos do ar.