Na última quinta-feira, 26 de junho de 2025, o Supremo Tribuna Federal considerou o artigo 19 do Marco Civil da Internet (MCI) parcialmente constitucional. O tema de repercussão geral tratava sobre a responsabilização das empresas de tecnologia pelos conteúdos veiculados em suas plataformas, inserindo-se nos debates sobre regulação de plataformas digitais no país, algo que tem aparecido de forma central na arena pública nos últimos anos.
Apesar dessa centralidade, do lado do Poder Legislativo, o que temos visto é uma série de becos sem saída quanto à possibilidade aprovação de uma lei que regule a atividades das plataformas digitais. Exemplo disso foi o PL 2630/2020, que teve ampla participação social durante seus anos de tramitação, mas acabou sendo enterrado no Congresso, mesmo depois do seu pedido de urgência ter sido aprovado pelo plenário.
Por outro lado, o Poder Judiciário não pode escolher sobre quais matérias se debruça. Nesse sentido, embora uma parte da opinião pública tenha gostado do resultado dado pelo STF, muitos desejavam uma resolução vinda do Congresso Nacional. Entretanto, preenchidos os requisitos para serem julgados, os casos que chegam ao Supremo devem ser apreciados pelo Tribunal, não cabendo aos Ministros o juízo de valor se devem ou não julgar – ainda que o Legislativo não tenha produzido a legislação específica. Uma das atribuições do Judiciário é justamente dar respostas no contexto de falta de clareza do legislador.
Assim, no julgamento de ontem a Corte analisou 2 Recursos Extraordinários, o RE 1.037.396/SP, Tema 987, e RE 1.057.258/MG, Tema 5330, este último com a mesma controvérsia, mas interposto antes da vigência do Marco Civil da Internet. Ou seja, a discussão se originou de 2 casos concretos, em que o rumo dos processos levou o debate até o STF – que levaram em torno de uma década par aterem desfecho, vale lembrar. Desse modo, embora se possa questionar a adequação da solução pelo Judiciário, fato é que a própria Constituição obriga o Tribunal a emitir um pronunciamento – não há como não decidir – as partes têm direito à prestação jurisdicional.
A verdade é que embora tenha havido uma decisão, a forma mais adequada de resolução deverá ser pela via legislativa, contudo, das dezenas de projetos de Leis que tramitam há anos no Congresso, poucos tem sequer uma expectativa de votação.
Desse modo, o julgamento do art. 19 do MCI não se trata, de forma alguma, de violação da competência legislativa, mas da solução concreta de um pedido recursal, até que sobrevenha uma lei que especificamente regulamente as plataformas – fato inclusive relembrado pelos Ministros durante os debates e na formulação da tese.
Feita essa breve introdução, nossa análise não pode perder de vista o fato de que o Sleeping Giants Brasil (SGBR) atuou como amicus curiae no caso e foi a organização a apresentar – especificamente – a necessidade da responsabilização das plataformas digitais pelo conteúdo publicitário.
Nesse sentido, entendemos como positiva a previsão de que as plataformas serão presumidamente responsáveis nos casos de veiculação de conteúdo ilícitos por meio de anúncios e impulsionamentos pagos, em razão da ciência prévia de seus conteúdos antes da disponibilização – algo que antes não acontecia.
Um aspecto muito lembrado ao longo do julgamento foi a reflexão de como o espírito do MCI refletia a Internet do momento de sua elaboração, entre os anos de 2009-2011 e sua aprovação em 2014, e como as redes se modificaram desde então. Os Ministros reconheceram que o entendimento firmado no MCI não se mostra mais suficiente para abarcar a totalidade das interações que hoje acontecem nas plataformas.
Outro ponto relevante – defendido pelo SGBR há muitos anos – e abordado pelo julgamento diz respeito ao dever de cuidado das plataformas. A tese aprovada pelo STF determina que os provedores atuem de modo diligente para combater a propagação de conteúdos ilícitos, com a criação de um rol taxativo de hipóteses em que o conteúdo deverá ser imediatamente indisponibilizado – sob pena de responsabilização da plataforma – configurando-se falha sistêmica. A noção de falha sistêmica (motivador da responsabilidade) foi conceituada como “violação ao dever de atuar de forma responsável, transparente e cautelosa”. Como dito, essa diligência de cuidado pelas plataformas é uma proposta já trazida ao debate público pelo Sleeping Giants, a exemplo da Nota Técnica “Regula Big Techs”, lançada em 2023.
Embora o resultado represente um avanço nas questões digitais, devendo ser celebrado, a tese firmada não abarcou a responsabilidade por conteúdos recomendados, deixando um vácuo sobre tal espécie. A Corte, que adequadamente se debruçou a diferenciar os tipos de conteúdo veiculados pelas plataformas (orgânicos, publicitários/pagos, etc.), aplicando a cada qual uma regra distinta, não se pronunciou sobre qual deve ser a responsabilização quando as redes sociais impulsionam determinados conteúdos conforme seus próprios algoritmos/interesses, a chamada curadoria. Em diversos momentos, os Ministros reconheceram os riscos e danos causados por conteúdos inadequados ou mesmo ilícitos impulsionados. Destacamos a fala de Flávio Dino, durante o voto do Decano Gilmar Mendes, com contribuição do Alexandre de Moraes, acerca da conduta do Google na época da votação do PL 2630.
Dino especificamente pontuou a ocorrência de “uma campanha massiva das plataformas, das empresas contra o Congresso Nacional. Chegamos ao ponto de uma delas, acho que Google, na sua página de entrada veicular uma campanha contra o projeto de lei, como se fosse uma espécie de um editorial, mostrando que a neutralidade é fictícia.”.
Moraes foi além, deixando claro que a conduta das Big Techs naquela ocasião, em verdade, tratou-se de “uma coação direta contra os parlamentares. Não só a questão do editorial como direcionamento em massa desses editoriais para as pessoas que consultavam o nome dos parlamentares. E a partir disso, uma troca algorítmica dos parlamentares que naquele momento estavam a favor da urgência.”. A conclusão, portanto, de que as plataformas “se auto instrumentalizam contra inimigos e a favor de amigos. Neutralidade zero. O que foi pensado naquele momento no Marco Civil da Internet é: como são neutras, vamos proteger de influências. Hoje é muito claro que precisam ser protegidas influências, mas não são neutras. Então a sociedade também precisa ser protegida dessa instrumentalização”.
Apesar de tal necessidade ter sido apontada nos debates, com a menção expressa de exemplos ocorridos recentemente, não houve uma deliberação final sobre a responsabilidade das empresas acerca da curadoria, perdendo-se uma ótima chance de estabelecer um regramento específico.
Noutro lado, a Corte deliberou a ampliação do rol do art. 21, algo que a própria jurisprudência e inovações legislativas já apontavam como uma mudança necessária. Pelo regime do referido artigo, o fato gerador da responsabilidade é a notificação extrajudicial e não uma decisão judicial. Importante dizer que a própria seção 230 do Communications Decency Act, que inspirou o art. 19 do MCI, tem um rol de exceções à imunidade das plataformas muito maior do que o originalmente concebido para o art. 19, em que apenas a notificação extrajudicial já permite a retirada de conteúdos, sendo este novo rol considerado um avanço.
Por fim, apesar dos longos debates e das soluções apresentadas, o Plenário encerrou o julgamento renovando o apelo ao legislador, sendo imperioso que o Brasil, através do Congresso Nacional, elabore uma legislação capaz de sanar as deficiências do atual regime quanto à proteção de direitos fundamentais.