A herança da Arte, de Lavigne e dos Ninjas para o Brasil

Em 2017, numa sala de aula da PUC-MG, assisti a um padre e professor de Sociologia do Direito, Dimas Ferreira, dedicar duas aulas inteiras a discutir a Mídia NINJA como sinônimo de revolução na história da comunicação brasileira que colocou em xeque a mídia tradicional ao deslocar os sujeitos para o papel central de desafiar as narrativas hegemônicas. Anos antes, entre 2013 e 2014, na FAFICH/UFMG estudei com um colega, Guidyon, que me apresentou ao Fora do Eixo em Belo Horizonte, onde ele próprio havia vivido. Conhecer seu modo de vida não me permitia negar: havia ali algo absolutamente inusitado, ousado, revolucionário e, sim, um pouco insano.

Minha vida mudou para sempre em 2020, quando, ao lado de Mayara e Leonardo, fundei o Sleeping Giants Brasil. Um movimento nascido da indignação e que se tornou uma das mais consistentes respostas da sociedade brasileira à desinformação, ao discurso de ódio e ao abuso de poder econômico das plataformas digitais. Desde então, vivi experiências que jamais imaginei, como ocupar uma cadeira no Conselhão da Presidência da República e outra no Conselho Consultivo da Anatel. Para um jovem cuja família não possui nenhuma relação com as dinâmicas do Poder, isso parecia inalcançável.

De todas as portas que se abriram pra mim nos últimos anos, contudo, pouca coisa me dá mais orgulho do que ter me tornado colunista da Mídia NINJA. Nesta semana, mais uma vez, os Ninjas reescreveram a história do país. Ao lado do 342 Artes e de Paula Lavigne, produziram uma das mais impressionantes viradas políticas da história recente brasileira, potencialmente enterrando, pela primeira vez no período republicano, um projeto de anistia para crimes cometidos contra a ordem constitucional. Mas a história que quero contar é outra, uma história que não é pública e que permite compreender a grandeza dos atos 21 de setembro para além de sua eficiência em interromper o nefasto projeto da blindagem parlamentar. 

Ao observar a movimentação organizada pela Midia NINJA e o 342 Artes, com chamamento para que o povo ocupasse as ruas com arte e política, especialmente no Rio de Janeiro, busquei entender como poderíamos colaborar. Contactei Paula Lavigne e Pablo Capilé, oferecendo minha energia para apoiar a organização dos atos em Belo Horizonte. Mas, como quem já carregava o Brasil nos ombros, Paula e Pablo me exortaram a fazer algo que não esperava: disseram que era hora de assumirmos a responsabilidade em nosso território e organizarmos, nós, o ato musical belo-horizontino.

Foi o que fizemos. Em menos de 24 horas, o Sleeping Giants Brasil e a Teia de Criadores colocaram de pé um ato musical com 13 artistas locais e que reuniu dezenas de milhares de pessoas em Belo Horizonte, provavelmente a maior manifestação democrática deste século na capital mineira. O sucesso da manifestação por aqui – e em todo o país – apenas foi possível em razão da ampla mobilização nacional puxada por Paula e a Mídia NINJA, bem como em razão de terem emprestado suas marcas e suas redes para repercutir o ato musical organizado às pressas por aqui.

Saímos do ato em todo o Brasil com uma demonstração expressiva de força. Mas o maior efeito de toda a mobilização dos Ninjas e do 342 Artes é o que aconteceu fora do palco e que têm passado despercebido de todas as análises da mídia. O campo popular-democrático iniciou essa semana com uma efervescência de novas conexões, articulações inéditas entre páginas e redes democratas, um aprendizado sobre como ocupar as ruas e as redes com estética, encanto e proposição e, sobretudo, sobre como operacionalizar tal infraestrutura para repetir – e ampliar – essa mobilização.

Os atos não foram apenas uma resposta pontual. Foram a refundação da habilidade dos democratas de mobilizar o engajamento público fora das redes a partir da retomada de movimentos históricos que eficientemente enfrentaram a ditadura militar. Reorganizamos nossas articulações, aprendemos a operar em um nível diferente, e foi devolvido a nós o vigor e alegria de quem acredita na política feita no corpo a corpo, com a arte e a cultura como elementos agregadores e curativos de uma sociedade marcada pela solidão e por crises de saúde mental típicas da Sociedade da Informação. Podres Poderes, de Caetano Veloso, foi alçada à categoria de hino do enfrentamento brasileiro à impunidade do golpismo neste século, assim como Pra não dizer que não falei das flores, Apesar de você e É proibido proibir estão marcadas na história nacional como hinos de enfrentamento à ditadura militar de 64.

Além disso, estão atravessados por uma profunda incompreensão dos atos aqueles que argumentam que apenas os mesmos nomes da MPB estiveram nas ruas. É claro que Caetano, Chico e Gil foram as imagens centrais de 21 de setembro, e nada mais natural, seja pela relevância histórica, política e cultural das três figuras, pela dimensão colossal dos atos organizados no Rio de Janeiro, pela liderança política nacional que Paula Lavigne representou na mobilização das manifestações e por uma certa beleza de se ver resgatada a memória da Passeata dos Cem Mil de 1968. Contudo, como lembrou Lavigne em entrevista à Veja, novos nomes da música popular brasileira estiveram nas ruas em todas as capitais. Marina Sena e Maria Gadú, no Rio; Fernanda Takai, Renegado e Lamparina em Belo Horizonte; Daniela Mercury em Salvador; Djonga e Pepita em Brasília; Silva em Vitória; Jota.pê, Otto e Marina Lima em São Paulo; Julia Passos e Keila em Belém. 

Uma nova geração de artistas da MPB, do Funk, do Samba, do Brega, do Rap viram suas referências musicais subir num trio elétrico e colocar sua arte em defesa do interesse público e do Estado Democrático de Direito. E diante de um profundo desejo de co-escrever a história do Brasil, artistas de todo o país olharam para Caetano, Gil e Chico e, sem pensar duas vezes, seguiram seus passos, certos de que a história brasileira já registrara de modo implacável o poder da arte contra o autoritarismo. Os atos, foram, portanto, uma inovação e um resgate. Inauguraram, através da música, um novo jeito de fazer política em tempos de exaustão das telas e das conexões digitais, oferecendo um novo espírito de coletividade, conexão e comunidade, hoje esvaziados pelas redes antissociais. Ao mesmo tempo, resgataram uma das mais bem sucedidas histórias de resistência cultural no Brasil, com toda uma nova geração de artistas sendo alçados a líderes locais e nacionais de movimentos democrático-populares. Ironicamente, alguns não conseguiram perceber esta que é uma das mais profundas heranças do último domingo.    

E é também por isso que Lavigne foi alçada ao papel de liderança política nacional, ainda que não desejasse esse lugar. De igual modo, a Mídia NINJA provou-se o mais revolucionário veículo de comunicação da história do país. Por isso, sinto um profundo orgulho de ser colunista Ninja, veículo que – como bem ensinaram meu professor Dimas e meu colega Guidyon – deslocou as estruturas do poder ao colocar os sujeitos como expoentes de resistência ao discurso hegemônico.

Certamente, nenhum de nós – nem mesmo os Ninjas e Lavigne – compreendam a profundidade das transformações que produziram nas dinâmicas sociais, mas nenhum democrata brasileiro tem dúvidas: Paula Lavigne e os Ninjas são fodas.

 

Humberto Ribeiro, é cofundador e Diretor do Sleeping Giants Brasil, membro do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social Sustentável da Presidência da República (CDESS/Presidência) e do Conselho Consultivo da Anatel.



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