Está na hora de, finalmente, a casa perder

Dados inéditos revelados pelo dossiê “A Saúde dos Brasileiros em Jogo” elaborado pelo Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS), em parceria com a Umane, uma associação civil que auxilia iniciativas voltadas à promoção da saúde, e a Frente Parlamentar Mista para Promoção da Saúde Mental mostrou que os danos associados às apostas e aos jogos de azar no Brasil geram um custo social anual de R$ 38,8 bilhões.  

Desse montante, a fatia mais trágica envolve a vida humana: R$ 17 bilhões são custos relacionados a mortes adicionais por suicídio, e R$ 10,4 bilhões referem-se à perda de qualidade de vida decorrente da depressão. O sistema de saúde é o mais sobrecarregado. Do total do prejuízo social R$ 30,6 bilhões estão diretamente ligados a gastos com saúde. 

 

Elas estão ao nosso redor 

Os dados revelam que a narrativa de prosperidade econômica vendida pelo setor é uma ilusão matemática. Enquanto as empresas de apostas lucram bilhões, a sociedade brasileira vive uma conta impagável de saúde mental, endividamento familiar e precarização do trabalho. 

No intervalo do jogo de futebol do seu time do coração, no feed da sua rede social, na TV, no rádio e até na recomendação do seu influenciador favorito. As “bets” — como ficaram conhecidas as plataformas de apostas esportivas e cassinos online — saturaram o cotidiano brasileiro com uma promessa sedutora de dinheiro fácil, ou como elas costumam propagar: “renda extra”. Mas, por trás do brilho dos anúncios e da euforia dos ganhos momentâneos, esconde-se uma crise de saúde pública e um rombo econômico que o Brasil está apenas começando a contabilizar. 

A conclusão de especialistas é clara: sem a proibição da publicidade e um combate extensivo contra essa indústria, estamos empurrando uma geração inteira para o abismo do vício. 

A principal defesa do setor de apostas sempre foi a arrecadação de impostos e a suposta geração de renda. No entanto, um dossiê elaborado pelo Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS), em parceria com a Umane, uma associação civil que auxilia iniciativas voltadas à promoção da saúde, e a Frente Parlamentar Mista para Promoção da Saúde Mental, desmantela essa tese. 

Enquanto a sociedade sangra quase R$ 40 bilhões, o retorno para os cofres públicos é irrisório. Dados da Receita Federal apontam que, entre janeiro e setembro de 2025, o setor arrecadou cerca de R$ 6,8 bilhões em impostos. A matemática é cruel: para cada R$ 1 que entra como imposto, a sociedade gasta quase R$ 6 para remediar os danos causados pelo vício. 

O dado mais estarrecedor é para onde esse dinheiro, que já é pouco, vai. O dossiê aponta que apenas 1% é destinado à saúde. Desse valor, 50% vão para o setor de esporte e turismo. 

Há um claro desnivelamento na distribuição do valor arrecadado. 

A “Glamourização” do Vício e o Alvo Infantil  

Se os números econômicos assustam, o impacto cultural e comportamental é ainda mais perverso. A onipresença da publicidade não apenas vende um produto: ela normaliza um comportamento de risco. 

Em entrevista ao Sleeping Giants Brasil, Rebeca Freitas, diretora de relações institucionais do IEPS, é categórica sobre o perigo dessa exposição: “O principal risco é a normalização e glamourização das apostas, especialmente entre jovens, crianças e populações vulneráveis, que podem passar a perceber a aposta como uma prática cotidiana, divertida e até desejável”. 

O cenário é de violação sistemática dos direitos da criança e do adolescente. Embora a lei proíba o acesso de menores de 18 anos, a barreira digital é frágil. A pesquisa TIC Kids Online 2025 revelou que 53% das crianças e adolescentes entre 9 e 17 anos já viram publicidade de apostas na internet. Entre adolescentes de 15 a 17 anos, esse número salta para 63%. 

A estratégia de marketing é agressiva e, muitas vezes, predatória. Freitas destaca o fenômeno dos “cassinos online com estética infantilizada”, citando o infame “Jogo do Tigrinho” (Fortune Tiger): “Há conteúdos direcionados a menores de idade, com linguagem e estética adaptadas, como o uso de avatares similares a jogos como Minecraft e Roblox”. 

Esses jogos são promovidos por influenciadores em plataformas como o YouTube, muitas vezes em canais com selo de conteúdo infantil, simulando ganhos exagerados em transmissões ao vivo que são deletadas logo em seguida para dificultar a fiscalização. Para o IEPS, isso configura uma violação direta do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). 

  

Pelo menos elas estão gerando emprego… Balela! 

Outro argumento frequentemente utilizado pelos defensores das bets é a dinamização da economia e a geração de empregos. Os dados oficiais do governo brasileiro, contudo, contam outra história. 

Segundo o dossiê das bets, obtido por meio da Relação Anual de Informações Sociais (RAIS) de 2024, o setor de apostas é um deserto de oportunidades de trabalho. Havia apenas 1.144 empregos formais ativos no segmento em todo o país, distribuídos entre apenas 60 empregadores. A média é escrachada: cerca de 19 empregos por empresa. 

 A concentração de renda é brutal. De cada R$ 291 de receita obtida pelas empresas, apenas R$ 1 se transforma em salário. Enquanto isso, a informalidade reina: 84% dos trabalhadores que atuam no setor não contribuem para a previdência — um índice muito superior à média nacional de 36%. 

Enquanto o setor não gera riqueza para o trabalhador, ele drena a renda das famílias. O impacto no orçamento doméstico já é visível no varejo e na subsistência básica. 

Um levantamento mostrou que 13% dos inquilinos já deixaram de pagar ou atrasaram o aluguel por causa de perdas com apostas online. Mais grave ainda: o vício já consome parte do orçamento alimentar das famílias brasileiras e fez com que 34% dos jovens adiassem o sonho de entrar na faculdade. 

  

A Urgência da Proibição da Publicidade  

Diante de um cenário de “epidemia” sanitária e drenagem econômica, a regulação tímida não é suficiente. Especialistas e entidades de saúde como o próprio IEPS defendem que o Brasil siga o caminho adotado para outras indústrias nocivas, como a do tabaco. 

“O modelo de regulação sanitária defendido pelo IEPS prevê a proibição da publicidade das apostas, com base na prevenção e minimização dos estímulos”, afirma Rebeca Freitas. 

Há um aumento considerável em projetos que tentam mitigar o problema das bets. O IEPS identificou 189 Projetos de Lei tramitando na Câmara e no Senado. As propostas variam desde a proibição total de propagandas na TV e redes sociais até o fim dos patrocínios a clubes de futebol e a vedação do uso de influenciadores digitais. 

A inspiração vem de fora. O Reino Unido, que possui um mercado de apostas maduro, trata o problema como uma questão de saúde pública. Lá, existe uma taxa específica (“Statutory Levy”), da qual 50% vão diretamente para o sistema de saúde (NHS). Além disso, o país impõe restrições severas à publicidade e possui um sistema nacional unificado de autoexclusão (“GAMSTOP”), que permite ao usuário bloquear seu acesso a todos os sites de apostas de uma só vez. 

O Brasil anunciou recentemente uma plataforma similar de autoexclusão, fruto de parceria entre os Ministérios da Fazenda e da Saúde. A partir de 10/12, o cidadão poderá excluir todas as contas de casas de apostas de uma só vez, sem acessá-las diretamente, e bloquear publicidades por e-mail, SMS e outros contatos, pelo período que escolher, utilizando apenas seu gov.br. 

Algo precisa ser feito. 

  

Desafios e caminhos propostos 

 O IEPS apresentou uma série de desafios que diversos projetos propõem, desde mecanismos de prevenção e monitoramento até cuidado com jogadores em risco, inspirados em experiências internacionais (como Reino Unido e Austrália) e alinhados ao modelo de regulação sanitária considerado ideal. Entre eles: 

Autoexclusão nacional unificada 

Um sistema em que o usuário pode se cadastrar para bloquear o acesso a todas as plataformas de apostas autorizadas, com validade nacional.  

Alertas de comportamento de risco 

Ferramentas nas plataformas que identifiquem sinais de uso compulsivo e alertem os usuários, sugerindo pausa ou busca de apoio.  

Mensagens obrigatórias de advertência 

Exibição de avisos de risco e de canais de ajuda durante as apostas ou em publicidades. 

Acesso facilitado a atendimento no SUS 

Ampliação da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) para receber apostadores problemáticos, com protocolos clínicos específicos.  

Limites voluntários de tempo e gasto  

Jogadores poderão definir limites de uso e valores máximos por sessão, e as plataformas deverão respeitar esses parâmetros. 

O Brasil vive um momento decisivo. Ou reconhece que as apostas online são um produto nocivo que exige controle rigoroso, ou continuará assistindo passivamente. 

 à transferência de renda das famílias mais pobres para conglomerados internacionais, ao custo da saúde mental da população. Como resume o dossiê do IEPS: “Sem atacar as raízes, as medidas compensatórias terão impacto limitado diante da crescente normalização das apostas na cultura digital brasileira”.  

A casa precisa perder desta vez. A vida dos brasileiros não pode estar nas mãos de dados viciados ou cartas marcadas. O SGBR vê a necessidade do fim das propagandas desses cassinos — e mais. Não basta fazê-los pagar mais daqui para frente: é necessário correr atrás do prejuízo e criar mecanismos, através da saúde pública, para ajudar aqueles que já foram afetados.  

A maioria das informações contidas neste texto foi retirada do dossiê “A Saúde dos Brasileiros em Jogo”, produzido pelo Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS) em parceria com a Frente Parlamentar Mista para Promoção da Saúde Mental (FPSM) e a Umane. Você pode acessá-lo através do link:  

https://ieps.org.br/saude-brasileiros-em-jogo-bets-apostas-impactos-saude/ 

Quem assina essa matéria: Licks, jornalista e membro da equipe de comunicação do Sleeping Giants Brasil. Arte: Jonas Rodrigues.

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